Múltiplas, trajetórias de envelhecimento feminino
Uma reportagem sobre velhices, autoestima e mudanças.
Por Teresa Cristina | Editado por Prussiana Fernandes
Colagens por Teresa Cristina
Envelhecer sendo uma mulher é diferente, principalmente se você for uma mulher negra. Beleza e velhice cabem no mesmo espaço. Não são perguntas. Ser ou ficar velha? Para falar de velhice, falamos antes de tudo de pessoas. Mirna Abidon, Zora Santos e Mariângela Rossignolli. Três mulheres com idades próximas, mas vivências e olhares diferentes. Assim como o mundo inteiro, todo o tempo, elas estão envelhecendo.
Este projeto é fruto de um trabalho de conclusão de curso em jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Durante todo o processo desta reportagem, uma foto ¾ de Tereza Dias Barboza estava pregada na parede. Tenho o costume de desviar o olhar quando preciso encontrar a palavra que falta. Na maioria das vezes, meus olhos se encontravam com os de Tereza. Do pequeno papel envelhecido, minha vó me encarava de volta, com um meio sorriso inclinado à esquerda.
Assim como a maioria das pessoas, minhas avós materna e paterna foram os principais referenciais de mulheres maduras enquanto eu crescia. Tereza, mãe de meu pai, nunca me deu um abraço, mas me emprestou seu nome. Ela morreu de infarto em 1991, com 75 anos, sem que eu pudesse conhecê-la. Foi professora de escola rural em Esmeraldas/MG, ensinando crianças a ler e a escrever. Depois que se mudou para Betim/MG, com meu pai, foi trabalhadora doméstica. Gostava de plantar, cozinhar, cuidar das flores e aprimorar sua caligrafia. É a sua fotografia que abre esta reportagem.
Emília Luís Gomes, minha avó materna, também faleceu, mas aos 74. Era o oposto e ao mesmo tempo tudo que se imagina de uma vó. Ela trançava o meu cabelo, cozinhava rosquinhas, farofa de banana, costurava e fazia tricô. Também era uma das pessoas que mais falava palavrão que já conheci. O que não se encaixa exatamente em uma das representações coletivas difundidas, ou melhor, um dos estereótipos de como seria uma avó: gentil, recatada, geralmente desprovida de beleza (aos olhos de outrem) e desejo sexual, mas repositório de conselhos, sabedoria e biscoitos assados. Definição ultrajante e machista que, além de não levar em conta a diversidade que existe entre as mulheres mais velhas, como toda generalização, aprisiona.
Há mulheres que efetivamente se enquadram em alguns pontos desse imaginário, como minha própria vó Emília, e outras que traçam caminhos bem diferentes. Por exemplo, Dona Dirce Ferreira, ou @donadirceferreira no Instagram. Uma das referências no novo perfil de influenciadoras digitais, em que idosos e idosas estão revertendo a ideia da internet como um espaço da juventude. Com mais de 260 mil seguidores e 73 anos de idade, boa parte de suas publis são de lingerie, com fotos sensuais e belíssimas — diga-se de passagem. Ela participa dos challenges (desafios) de dança na rede social de vídeos TikTok e ostenta looks (combinação de roupas) que muitos diriam não ser apropriados para a sua idade. Esta afirmação poderia vir porque, como Simone de Beauvoir escreveu, em A Velhice (1970): “se os velhos manifestam os mesmos desejos, os mesmos sentimentos, as mesmas reivindicações que os jovens, eles escandalizam; neles o amor, o ciúme parecem odiosos ou ridículos, a sexualidade repugnante, a violência irrisória”. Seguir comportamentos ditos jovens, é claro, não é o único jeito de experienciar o envelhecimento.
Ora, se a velhice é um destino inevitável para todos, de qualquer lugar, a não ser pela morte na juventude, poderia mesmo haver uma só forma de vivê-la?
Em uma sociedade que exalta a juventude, as cobranças de comportamento para a velhice são grandiosas e difíceis de se cumprir. Para as mulheres, ainda recai as exigências de que sigam um padrão físico de beleza, em que não cabe o envelhecimento visível. Os sinais de idade, como cabelos brancos, flacidez e rugas, devem ser combatidos ou escondidos. Velhice e juventude aparecem como antagonistas em qualidade: ser jovem é bom e envelhecer é ruim.
O que significa, então, ser velha? É mesmo uma palavra pejorativa e um destino infeliz, digno de arrepios? Ou seria velha só uma qualidade descritiva daquilo que se olha? Seria mais adequado o termo idosas para se referir ao envelhecimento? Existe beleza na velhice?
Esta reportagem não tem a pretensão de trazer respostas definitivas. Esta é uma contextualização, a partir, sobretudo, da história de vida e a visão de mulheres comuns que, diante do passar dos anos, têm se deparado com os encantos e os desprazeres do envelhecer. Um pequeno spoiler das próximas linhas: existe sim beleza no envelhecimento.
Como a velhice é entendida no Brasil?
Somos cerca de 210 milhões de pessoas habitando o Brasil — dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em 2021, 37,7 milhões têm mais de 60 anos de idade. O que corresponde a 17,9% da população. Isto é, quase um quinto da população do país é composta por idosos, se adotarmos a definição do Estatuto Brasileiro do Idoso.
Dentre as pessoas com mais de 60 anos, 48% são negras. É o que diz a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2018. Dessas, a maioria se declara como pardo ou parda: 39,2%. Pretos e pretas são a minoria, 8,8% da população idosa brasileira. Isso dá, mais ou menos, 3 milhões de pessoas.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estipula que, em países em desenvolvimento, são idosos aqueles que ultrapassam os 60 anos de idade. O número é diferente para as nações desenvolvidas: nelas, é idoso quem tem mais de 65 anos. Simone de Beauvoir, em outro ponto de A Velhice, explica que “ a velhice não poderia ser compreendida senão em sua totalidade; (…) não é somente um fator biológico, mas também um fator cultural”. Por isso, o envelhecimento, apesar de comum a todos, tem diferentes análises e impactos segundo os contextos sociais e econômicos dos territórios.
As macro questões interferem, por exemplo, na expectativa de vida das pessoas, que não é estática. Até 2019, segundo o IBGE, estimava-se que o(a) brasileiro(a) viveria, em média, até aos 76,5 anos. Assim como em outros vários aspectos pós-2020, a pandemia também saiu chacoalhando essa definição. De acordo com um estudo de pesquisadores de Harvard, da Universidade do Sul da Califórnia, de Princeton e do Departamento de Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais, o coronavírus em escala mundial diminuiu 1,58 anos na expectativa de vida de brasileiros(as) na faixa etária dos 65 anos.
Recentemente, em junho de 2021, a OMS incluiu a velhice na nova Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-11). Isso passaria a classificar os sintomas e os sinais do envelhecimento como passíveis de diagnóstico, em outras palavras, como uma doença. Instituições e estudiosos de todo o mundo tentam reverter essa decisão, que entraria em vigor a partir de 2022. A Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) discorda dessa classificação: “velhice não é doença”, afirmam em campanha. Tal qual a infância e a vida adulta, a velhice nada mais é do que um estágio da vida.
Em A Bela Velhice, a antropóloga Mirian Goldenberg, reconhecida no Brasil pelos seus estudos acerca do envelhecimento, propõe a invenção de um projeto de vida para a velhice. Ela diz sobre as inúmeras maneiras de construir e de experimentar a beleza desse período, sem deixar de reconhecer os aspectos negativos que o envelhecer traz. A bela velhice recusa estereótipos e cria possibilidades. Em um trecho, Míriam concebe: “(…) está inscrita em cada um de nós. Só assumindo consciente e plenamente, em todas as fases da vida, que nós também somos ou seremos velhos, podemos ajudar a derrubar os medos, os estereótipos e os preconceitos existentes sobre a velhice”.
As três visões: a nova classificação da OMS, a campanha da SBGG e a proposta de uma bela velhice de Goldenberg apontam para a heterogeneidade da velhice. Dificilmente será definida só por fatores biológicos.
Envelhecer é viver uma história
Com pavor à palavra velha, Mirna Abidon dos Santos é uma agitada, temperamental e bem-humorada mulher de 63 anos. “Eu posso me chamar de velha, você não”, diz entre risos. Rejeita da mesma forma o termo ‘idosa’, ainda que se enquadre — pela visão do IBGE e da OMS. É uma das 3 milhões de pessoas pretas com mais de 60 anos do Brasil.
A autopercepção de Mirna demonstra como o fator biológico (a idade) não é o único que determina o que é velhice.
No seu aniversário de 60 anos, em 2018, Mirna ganhou da filha mais velha Sarah um ensaio fotográfico. Sem estar acostumada a ser a cereja do bolo, como ela mesma definiu, a primeira reação foi pensar: “mas eu, nessa idade?”. Depois de ver o resultado, o pensamento muda — e um pouco da autoestima também: “eu sou isso tudo aqui?”, dizia enquanto apontava para as fotos. Foi a partir disso que nos conhecemos. A fotógrafa é uma amiga querida de longa data, que nos apresentou quando soube do projeto desta reportagem.
Para evitar a pandemia, nosso primeiro encontro foi virtual. Em cerca de um ano, essa foi a primeira vez que Mirna conversava com alguém “de fora” sem máscaras, me conta. Ela vestia uma camisa preta, usava o cabelo crespo preso, óculos de grau e estava sentada na varanda de casa. A expressão de Mirna é gentil, sem deixar de transparecer sua personalidade energética de quem se impõem no espaço. Mesmo sob essa face, ainda estava tímida, com os ombros retraídos.
É uma diretora de escola aposentada, mãe de dois filhos e vivendo um casamento de 27 anos. Casou-se aos 36. Antes era uma motociclista que gostava da liberdade do vento no rosto e de ir em pagodes em outras cidades todos os finais de semana. A barriga da primeira gravidez foi o que a fez desistir da moto e eventualmente abandonou os pagodes por ter perdido o pique, afirma.
Tivemos alguns encontros e neles, no assunto velhice, ela passeava entre bendizer certos aspectos e amaldiçoar outros. Todos relacionados às mudanças, que é o que caracteriza em gênese esse estágio da vida. Mirna vive o começo do que é considerado velhice, em que algumas transformações vão ficando mais perceptíveis.
A vida, pois, é marcada por modificações, do corpo e da mente. Da infância à fase adulta, por exemplo, as mudanças são grandiosas, consideráveis e visíveis. O ponto chave que atormenta aqueles e aquelas que têm medo de envelhecer são as perdas. Seria a velhice traduzida em perdas? Nos momentos de glória da avaliação de Mirna sobre o tema, ela a define como uma “coisa interessante”: “você olha no espelho e percebe que ficou muito tempo sem olhar de verdade”.
Um hábito que a diretora mantém hoje é, diante do seu reflexo, com cuidado, leveza e demoradamente, passar um creme hidratante na pele e se observar. “Minha pele não era assim”, reflete e rememora experiências enquanto vê as marcas. Na cútis, as rugas começam a despontar com mais força, ainda de forma mais lenta do que seria em uma pele mais clara. A derme retinta demora mais para envelhecer — um dos motivos é que a melanina torna a pele preta mais resistente à exposição solar.
Mesmo enxergando as belezas da ação do tempo no corpo, diz ter sido duro se perceber envelhecendo, mas “encarou bem”. Ainda assim, se pudesse ser jovem a vida toda seria. Afirma sem constrangimentos. “Todo mundo fica velho, se não morrer antes. Qualquer pessoa que cê perguntar ‘você quer ser jovem ou rico?’, responderia o primeiro, com certeza. A juventude é boa. Cê tem mais energia. O jovem não tem medo. A pessoa mais velha tem medo de cair, entendeu? Fora que a pessoa passou de determinada idade não é mais ouvida. O jovem tem um tempo maior, então ele pode planejar. Gostaria de poder voltar no tempo e refazer as coisas”.
Tempo. Tempo. Tempo. És uma das deusas mais lindas.
Nasceu e cresceu em uma casa, no bairro Cachoeirinha, de Belo Horizonte (MG), com o pai Pedro Gomes dos Santos, a mãe Milta Abidon dos Santos e seus sete irmãos: cinco biológicos e dois adotivos. Seu Pedro trabalhava como porteiro em dias alternados e também na prefeitura da capital, como fiscal. Começou carreira enquanto capinador de lotes para a prefeitura, aos 18 anos, mas por saber ler e ter boa caligrafia — habilidades diferenciais para a época — foi recebendo promoções. Construiu mais cinco barracões no lote de propriedade da família, em Cachoeirinha, para alugar para terceiros.
Os muitos trabalhos de Pedro permitiram condições financeiras um pouco melhores do que a maioria das outras famílias negras da época, conta Mirna. O desejo do pai e da mãe era que os filhos seguissem a vida sem muitas dificuldades e, por isso, durante a infância, a educação foi a grande prioridade — disciplina que era exigida principalmente por Pedro. Mirna descreve que, ainda que trouxesse problemas com bullying/racismo, a resposta do progenitor era dura. “Você não está na escola para ser bem tratada, está para estudar”, dizia. O apreço pela educação, apreendido na meninez, perdura.
Cursou Ciências Contábeis e uma Licenciatura Plena na faculdade. Prestou concurso, então, para a Rede Ferroviária Federal (RFFSA) e conseguiu a vaga no setor contábil. Na década de 90, mesma época do nascimento da primeira filha, o Brasil vivia a era de privatizações, com o Programa Nacional de Desestatização. A RFFSA foi uma das dezenas de empresas privatizadas e Mirna uma das 18 mil demissões consequentes. Os demitidos receberam uma indenização e um valor referente ao tempo de trabalho como incentivo.
Antes da demissão, ainda na Rede Ferroviária, atuava como um tipo de professora de reforço voluntária. Adolescentes que trabalhavam na modalidade que hoje é chamada de Jovem Aprendiz a procuravam em busca de apoio para atividades escolares, informalmente. Gostava disso.
Munida dessas lembranças, com uma filha no colo e o dinheiro da indenização no bolso, decidiu abrir uma escola. O fez em 1997.
O Centro de Educação Somir em Contagem (MG) — cidade em que vive atualmente — funcionou até o ano passado. Com a pandemia, precisou ser fechado. Mirna era diretora, professora e dava aula de reforço, na escola e em casa.
Respeite meus cabelos (,) brancos
Para fazer dar certo, se desdobrava em várias. Ainda assim, em alguns infelizes momentos, se frustrava. Não por sua culpa, mas sob o olhar do racismo estrutural. Sua imagem não se encaixava nas expectativas racistas e gordofóbicas de como deveria ser uma pessoa em lugar de autoridade. Era necessário se afirmar o tempo todo. “Quando procuravam pela diretora, acho que esperavam uma pessoa branca, magra, de olhos claros. Falavam comigo por telefone, chegavam na escola e se ‘assustavam’. Dava para perceber. Era difícil, sabe?”, cita um exemplo.
Essa reação não vinha só de pessoas externas. Mirna relata que alguns funcionários tinham dificuldade em reconhecer sua autoridade e respeitavam mais supervisores brancos do que ela: a diretora e dona da Escola. E o problema era evidentemente racista.
Narra, ainda, algumas situações vividas antes de eventos no colégio:
— Como é que você vai se arrumar para a formatura? — alguém do trabalho lhe perguntou.
— Normal. Vou fazer uma trança no lado do cabelo.
— Mas você não vai fazer uma escova? Você podia fazer uma prancha. — disse com estranhamento.
— Não, uai. Esse é o meu cabelo o ano todo. Não vou mudar.
— Aí, eu só tô te dando a dica, não é por mal não, só para… né?
Em outro momento:
Usar o cabelo natural hoje — crespo e com fios brancos — é sinônimo de liberdade para a ex-diretora. Para as mulheres negras, é mais que estética. “Nós exigimos”, diz ao falar dos cuidados com o crespo. Ela lamenta como, aos 20 anos, não se sentia tão segura para ostentá-lo. “Tinha quase que bater nas pessoas para usar o natural. Te convenciam que você precisava mudar para ser aceita. E a gente acreditava nisso”, narra sobre a juventude.
Sua história com o cabelo começa na infância. A mãe esquentava o pente de ferro no fogo alto. Aparato patenteado por Annie Turnbo, em 1900, aquecido em elevadas temperaturas, alisa o cabelo. “Ai, aquele negócio é horrível”, suspira. História de Mirna e de muitas mulheres negras mais velhas. No Brasil, o pente-quente foi mais popular entre os anos 1940 a 1980. Quando Milta virava as costas, a pequena Mirna corria e lavava os cabelos. Até que a mãe desistiu. “Com isso eu assumi, usei a nuca batida e um blackzin por muito tempo. Depois que Sarah nasceu, surgiu um produto de relaxamento novo que todo mundo tava usando. Relaxei por uns seis anos mais ou menos. Depois cansei. Esse negócio de passar mais de quatro horas no salão de beleza não é para mim não”.
Com a palavra, Mirna Abidon: “A coisa mais bonita do mundo é a gargalhada”
No nosso segundo encontro, Mirna apareceu mais sorridente e com uma blusa amarela viva. Brilhava. Mais confortável com a entrevista e com suas histórias, me diz que a escolha pela roupa é para combinar com o clima: “o sol está bonito, o dia tranquilo, escolhi uma roupa que transmitisse alegria também”.
O passar do tempo, curto ou longo, tem um efeito libertador sobre ela. Como se ganhasse mais familiaridade consigo e pudesse ser mais justa. “Hoje me sinto bonita”, enfatiza o marco temporal. Antes não se sentia assim principalmente por interferências externas. Era uma mulher negra retinta com seus traços, seu corpo e cabelo vivendo o Brasil dos anos 70, 80, 90, em diante. É fácil dizer a causa da crueldade em relação a sua aparência.
Durante a entrevista, Mirna falou sobre as mudanças na sua autoestima:
Atualmente se sente mais livre do olhar do outro. Aponta o envelhecimento como fator importante nesse sentido. Explica que, com o tempo, as relações mudam, assim como a perspectiva sobre elas. Algumas questões perdem importância, outros mistérios são revelados e a intimidade com a vida passa a ser prioridade. “É viver acima das pequenas coisas”, resume. Essa é, para Mirna, uma das principais belezas e possibilidades no envelhecimento.
Silêncio, minha mãe parou de cantar
“Era uma pessoa alegre”. “A gente achava que tava chateada com alguma coisa que a gente fez”. “Era muito vaidosa, adorava se arrumar”. “Começou a ficar mais calada, mais na dela”. “Minha mãe cantava muito”. Frases usadas por Mirna, em momentos diferentes, para me explicar sobre sua mãe.
As tardes de sábado na casa de infância eram de muita celebração. Ainda que não houvesse motivo específico. “O pessoal achava que tinha festa todo final de semana, mas não. Era nossa família. Éramos extremamente felizes. Nós juntos, qualquer coisa virava festa”. Violão, dança, biscoito frito, parentada, varanda. Cantando, Milta era a personagem principal. Mas, no desenrolar dos anos, foi se silenciando. O calor que vinha dela e esquentava a família esfriou-se lentamente, dando lugar a um vazio incômodo e dolorido, que à primeira vista era sem explicação. Não se deram conta da depressão. “A pessoa velha negra não sabe o que é depressão. Não sabe que é doença. Hoje é visto diferente. Antigamente era manha, pirraça”.
Idosos e idosas estão entre os mais atingidos pelo sofrimento mental, principalmente a depressão. Um estudo recente do IBGE, a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, aponta que a doença atinge cerca de 13% da população entre os 60 e 64 anos de idade. A taxa de suicídio entre idosos é, também, preocupante: segundo o Centro de Valorização à Vida (CVV), 1.200 pessoas com mais de 60 anos morrem anualmente no Brasil da causa.
Mirna aflige-se dizendo que seria diferente se a mãe fosse branca. Não existia lugar para fragilidade em uma mulher preta que criou sete filhos. Da mulher negra exige-se força sobre-humana. É a população que mais sofre com a violência obstétrica, por exemplo. Um dos motivos é, justamente, a crença de que o corpo é forte, quase animalesco, e aguenta em silêncio o fardo da dor. Ainda que estejam mais expostas a vulnerabilidades, não há espaço para lamentação. “Quando descobri que estava doente, ela tava no estágio que não queria mais viver”.
Velhofobia pandêmica
A tragédia compartilhada da pandemia agravou quadros mentais pelo mundo — ainda agrava no Brasil, a despeito de centenas de milhares de vidas levadas por uma doença que já existe vacina. No caso da velhice, a pandemia intensifica medos já conhecidos: da morte e da solidão. As pequenas (e grandes) violências suscitadas pelo pânico e ojeriza que emergem nesse contexto tornam ainda piores a passagem das pessoas mais velhas por esse momento. Isto é, aumentou-se a ocorrência de idadismo ou etarismo.
Idadismo é definido pela psicóloga, mestre e doutora em Comunicação e Cultura, Gisela Castro, como “uma forma ainda muito pouco discutida de preconceito baseado na idade”. Para ela, ocasiona a discriminação contra idosas e idosos, contribuindo para a sua marginalização e eventual exclusão social. Na pandemia, o fato de pessoas com mais de 60 anos serem consideradas grupo de risco foi motivo para que muitos expusessem seu desprezo pelo grupo. Por exemplo, é etarismo quando minimiza-se a gravidade da doença que é mais perigosa para idosos — afirmação imprecisa em 2021, com o surgimento de novas variantes e o descontrole da pandemia em alguns países — , como se essas vidas fossem descartáveis. “Afirmações dessa natureza configuram preconceitos. Quando o critério etário é utilizado para fazer avaliações negativas, que desvalorizam ou desqualificam, entra-se no campo dos estereótipos”, afirma Anita Liberalesso, psicóloga e professora titular na Unicamp, no contexto da pesquisa Idosos no Brasil: Vivências, desafios e expectativas na terceira idade, de 2006, mas que cabe perfeitamente na circunstância da pandemia.
Em 2020, pessoas com mais de 60 anos eram a maioria entre as internações hospitalares por coronavírus. O avanço da vacinação alterou o quadro e, segundo dados do Boletim do Observatório Covid-19 da Fiocruz, publicado no dia 9 de julho, a idade média dos casos internados no final de junho de 2021 foi de 52,3 anos. De todo modo, ainda persiste a ideia de que essas pessoas devem ser postas de lado ou as únicas a ficarem em distanciamento social no chamado isolamento vertical, defendido publicamente pelo presidente da república em pronunciamentos.
O etarismo já coloca pessoas idosas há tempos como um peso para a sociedade por razões econômicas. Nessa crença, o corpo envelhecido renderia menos ao capital que um corpo jovem. Em uma sociedade em que o lucro vale mais que a vida, essa suposta improdutividade gera invisibilização e velhofobia. Mesmo com essa visão preconceituosa e degradante, dos 37,7 milhões de idosos brasileiros, 75% contribuem com pelo menos metade da renda familiar — dados do DIEESE.
A violência física também cresceu na pandemia. De acordo com informações da Agência Câmara de Notícias, só em 2021, foram 37 mil notificações de violência contra os idosos, 29 mil delas sobre violência física.
Beleza sênior
Itaguaí. Rio de Janeiro. 2019.
Mariângela Rossignolli é eleita Diva Brasil Plus Size Elegante, no Teatro Municipal da cidade.
O universo de pequenos concursos de beleza me era desconhecido e estranho até o relato da modelo sênior. Aliás, a categoria “sênior” para a modelagem já foi, por si só, uma descoberta curiosa. Adjetivo de dois gêneros: que ou aquele que é o mais velho relativamente a outro. Mariângela tem 58 anos. No concurso Diva Brasil Plus Size, era a mais velha entre as candidatas. A única grisalha também. Me explica que a divisão por categoria era a seguinte: tradicional até os 30 anos, sênior depois dos 30.
Da sua entrada no hotel à passarela. Toda a performance da modelo sênior foi pensada junto de uma preparadora. “Esconde a roupa e o sapato, seja simpática, faça tal tipo de passarela, conversamos sobre tudo. Foi como um concurso de miss, eu fui para ganhar”, narra. Sobre a necessidade de esconder o vestuário, Mariângela argumenta que o mundo de concursos de beleza, sobretudo no plus size, é extremamente competitivo. “Tem as sabotadoras que rasgam vestidos, destroem maquiagem, colocam cacos de vidro na sapatilha, essas coisas”. Comemorou que nada disso aconteceu.
Entre as roupas que utilizou no concurso, dá destaque para uma calça preta com pedras brilhantes colocadas na lateral. A cor é exigência das organizadoras, o brilho foi ideia de Mariângela, com ajuda de um colega designer. No dia da competição, um chuvoso domingo de novembro, a contragosto da modelo, foi necessário sair do hotel já com sua legging cintilante, rumo ao Teatro Municipal de Itaguaí. A cena resultante teve descrição com quê hollywoodiano.
A maioria das outras candidatas estavam no saguão do hotel se preparando para sair. Para chegar no espaço, era preciso descer uma escada que dava para o segundo andar, onde Mariângela estava hospedada. Lugar pequeno, todas as competidoras estavam próximas. Já calçada com um par de saltos e vestindo a calça brilhante, reduziu a velocidade da descida com medo de se acidentar. Enquanto descia lentamente as escadas, um faixo de luz encontrou a legging e reluziu o brilho das pedras pelo espaço. “O comentário de geral foi ‘por que eu não tive uma ideia dessa?’ ‘que calça linda’ e ‘não sei o que mais’. Já tive a oportunidade de vesti-la mais duas vezes depois do evento, todo mundo se apaixona”, conta.
Durante um de nossos encontros, Mariângela pediu uma pausa para encontrar a calça e me mostrar, orgulhosa, pela câmera do celular. A legging, a preparação e o cabelo grisalho são indicados por ela como os seus grandes diferenciais na competição.
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“O mais interessante é que a categoria elegante é retirada entre todas as candidatas, tradicionais e sêniores. O título é importante? Claro que é! Mas, para mim, o melhor foi mostrar que a mulher, independente da idade, se ela quer, ela consegue”, disse.
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Ela não era modelo profissional até recentemente. Depois da morte do pai, em 2017, mesma época da aposentadoria como pedagoga, sentia que a vida precisava de algo. Um ano depois, junto de outras mulheres que de forma espontânea formaram um grupo — que funcionava no Whatsapp — de empoderamento feminino, fez um ensaio fotográfico para elevar a autoestima. Lá, foi convidada a participar de um curso de modelos em uma agência de Belo Horizonte.
É uma mulher branca belorizontina, ativa, que gosta de conversar e fazer novas amizades. Teme ser vista como senhorinha pelas pessoas e, em contraponto, acentua sua sensualidade sempre que possível. Seu corpo não se encaixa na norma de magreza e por isso teve dificuldades de assimilar que poderia ser modelo e uma pessoa bonita. Fazer isso agora, depois dos 50, traz um ar subversivo que a atrai.
Beijinhos platinados
Embora viva um momento de aceitação ao corpo e aos sinais da idade, ainda é bastante impactada pelos padrões de beleza: “o meu estilo é roupa que esconda a barriga”, diz. A autoestima em relação à aparência não é, de fato, linear. A metáfora mais próxima seria a clássica montanha-russa, especialmente em uma conjuntura em que somos bombardeadas por informações e estímulos contrários o tempo todo.
Mariângela cita, a título de exemplo, uma lista de procedimentos estéticos e cirurgias plásticas que deseja, indicadas por amigas. Versa sobre o viço da juventude que deu lugar à flacidez, dos seios que não estão mais “no lugar” e do acréscimo de alguns centímetros na circunferência do quadril. Transformações que estão se intensificando com os aniversários e que a incomodam de um jeito conflituoso. De forma geral, o seu discurso é pelo direito de as mulheres se sentirem confortáveis com a idade e o corpo que tem, mas “sem relaxar”.
Contraria, por outro lado, o estereótipo negativo de que manter o cabelo grisalho é sinônimo de desleixo ou relaxamento. Para ela é expressão de autenticidade e independência. É parte significativa de quem ela é e da identidade que está descobrindo em si. No Instagram, é uma marca registrada: ao final de cada stories se despede com a frase “beijinhos platinados, tchau tchau”.
“Cabelos brancos parecem significar uma forma de liberdade individual, independência e rejeição das prisões às quais as mulheres estão submetidas. (…) Muito mais do que um sinal do tempo, os cabelos brancos aparecem como um sinal da relação dessas mulheres com o tempo”, diz trecho do artigo ‘Consumo da beleza e envelhecimento: histórias de pesquisa e de tempo’, das pesquisadoras Letícia Casotti e Roberta Campos, de 2011.
Sobre estar viva
“Uma sobrevivente”, Zora Santos se define. Com 68 anos, é atriz, cozinheira e multiartista nascida e criada em Belo Horizonte/MG. Natural do bairro Anchieta e crescida na Vila Pombal em uma típica casa de família preta — como ela pontua — , filha de Hely Sebastião dos Santos e Maria Queiroz dos Santos.
Enquanto atriz, teve importantes participações — como nos filmes Os Inconfidentes (1972), Chico Rei (1985), Pare e Siga (2017) e Vaga carne (2019); e nos espetáculos O Relatório Kinsey, Orfeu, A incrível Borboleta Azul, No mundo da lua e Teatro Riva. Em 2018, atuou, ainda, no projeto belorizontino Segunda Preta e protagonizou a cena Aquela Mulher, de direção de Ricardo Aleixo.
Antes de se aventurar pela atuação, na década de 70, trabalhou como modelo. Começou na carreira depois de ganhar um concurso de beleza de uma emissora mineira da época, a TV Itacolomi, no Programa Sérgio Bittencourt. Não tinha interesse em competições ou pela carreira de moda. Foram colegas do colégio católico em que estudava, o Ginásio Cruz Vermelha, que a inscreveram para o concurso. De lá em diante, modelou inclusive fora do país.
Hoje, da experiência, exalta exclusivamente as portas abertas para a carreira de atriz — a visibilidade trouxe o convite para o primeiro filme — e o contato com outros lugares do mundo. Zora aponta a exotificação e sexualização do corpo negro como as principais causas do descontentamento com essa fase profissional. “Eu era o exótico ali. Me sentia uma vaca de gado em exposição. Os cachês de modelo negra eram menores, por exemplo. Só agora consigo ver o quanto eu fui usada por esse mercado e pelo segmento”, diz.
Para a atriz, até hoje a mulher preta não é vista como bonita de fato. O elogio é por meio de exotismo, colocando-a como uma espécie à parte. Se diz geralmente “olha, uma mulher bonita” para se referir a uma mulher branca e “veja, que negra linda” para uma preta. Zora defende, ainda, que na época em que trabalhava na área, “as modelos negras começaram a ter trabalhos porque a indústria da moda percebeu que vendia produtos e era só isso”.
Uma herança positiva dos tempos de modelo, junto da carreira de atriz, é o entendimento de se expressar pelo vestuário. “Meu corpo é uma tela em branco”, define. O pinta com tecidos, acessórios e peças, dizendo — sem esboçar nenhum som — de sentimentos e emoções.
Conhecer Zora é estar diante de uma existência de muito fervor e presença. O primeiro impulso é tentar transformá-la em algo mais, de essência quase que divina. Logo vê-se que ela é uma pessoa, de carne e osso, inventando uma vida. O que torna tudo mais genial.
Meditando sobre inventar a vida e sobre o contexto pandêmico, Zora nos diz:
Chuva desigual
A baixa qualidade da câmera do computador se unia à fumaça do cigarro e à lentidão da internet — que por vezes travava a imagem de Zora — , causando intensos ruídos na conversa. O papo, com dificuldades, foi levado ao som de um jazz, baixinho, que vinha da casa da atriz. Ela estava confortável, com postura e energia majestosa, fumando um cigarro após outro. Nos primeiros momentos, me disse da chuva que chegava forte em Belo Horizonte/MG e que, pelo barulho, me ouvia mal. Enquanto em Betim/MG, de onde eu estava, a noite seguia sem nenhuma nuvem. Brincamos sobre esse afastamento e a proximidade estranha entre as cidades. Com mais ou menos 40 km de distância entre elas, menos de uma hora de viagem de carro, muitas similaridades e, mesmo assim, naquela noite, não dividiam a chuva. Um tempo depois, ao final do encontro virtual, o temporal alcançou minha casa.
Toda essa imagem é uma interessante alegoria para entender a relação da juventude com a velhice. Os ruídos de entendimento, a revelação de uma chuva que está por vir e a distância que é mais próxima do que se imagina. Para quem é de uma região metropolitana, sabe, ainda, que a divisa física entre essas cidades não é tão perceptível enquanto se atravessa. Graças a conurbação: fenômeno urbano da união de duas ou mais cidades, em consequência de seu crescimento geográfico; existe uma “área cinza” quando as cruzamos, e por vezes não percebemos que passamos de um lugar ao outro.
Em continuação a alegoria, a chuva seria como o envelhecimento: tem suas belezas e infortúnios. Se você vive em um bairro estruturado e tem acesso a um teto seguro e a possibilidade de estar em casa aproveitando, um pé d’água pode ser uma experiência agradável. Por outro lado, se você mora em uma região de risco, sem saneamento básico, paredes erguidas em barro, uma garoa é sinônimo de insegurança, sinal de perigo.
“Há uma situação de iniquidade social para idosos negros, que carregam uma série de discriminações ao longo da vida, afetando negativamente os comportamentos, as condições de saúde e o acesso e uso de bens e serviços de saúde”, explica Alexandre Silva, professor da Faculdade de Medicina de Judiaí, docente na Universidade Cruzeiro do Sul e pesquisador de raça e envelhecimento, em entrevista a Revista Aptare. As vulnerabilidades sociais que o racismo gera, na chegada à velhice, são transformadoras da experiência, tal qual a chuva para quem mora em uma área de risco.
O pesquisador explica que é como se houvesse um acúmulo de desigualdades no envelhecimento de uma pessoa preta, que vão se amontoando desde a infância. Disse em outro momento da entrevista:
“A trajetória de uma pessoa negra (preta ou parda) já começa em situação de desigualdade ainda antes de nascer, quando já se observa a qualidade e quantidade das consultas pré-natais de mulheres negras, passando pelas causas de mortalidade na fase jovem e adulta da pessoa negra e, quando todas essas barreiras são ultrapassadas, o envelhecimento não será semelhante ao de outros grupos de idosos”
Comida de cerca: o futuro é ancestral
Zora narra sobre saberes ancestrais da família preta sobre comida e saúde, escute:
Ela é também pesquisadora da comida Afro Mineira. “A cozinha mineira é cozinha de preto”. Explica que praticamente tudo que é conhecido nacionalmente como comida mineira tem origem negra, de escravizados que aqui foram trazidos, depois de terem sido retirados à força de seus locais de origem. O uso de ora-pro-nóbis e quiabo são bons exemplos. Foram trazidos de África e, hoje em dia, junto do frango cozido, são chamados de pratos tradicionais de Minas Gerais.
Parte da concepção maior, em que a atriz resgata saberes ancestrais no projeto de comida de cerca, é a sua atuação no Instagram, no perfil @zoratikarsantos. Diariamente, ela compartilha receitas tradicionais da culinária Afro Mineira e, aos sábados, realiza um encontro com inscritos em que cozinha junto com as pessoas.
Não sou sua velha
Como já se dá para concluir, durante praticamente toda a sua vida e ainda em curso, Zora se absteve de normas sociais. Além do que já foi apresentado, a forma como experienciou a maternidade é um bom exemplo. Ouça:
Do mesmo modo, tenta desviar de normas de velhice, negando rótulos. A forma como a palavra escapa da boca já denota indiferença. Fala de “velhice”, “velha”, “envelhecimento” em tom de brincadeira ou como uma piada inventada entre colegas. Para ela, velhice é só um conceito, algo que não existe de fato, o que existe é aceleração da morte das células. “Mas não sou cientista”, se explica.
Continua: “Aos olhos de ser jovem, a gente começa a ficar debilitada fisicamente. Eu, sinceramente, não enxergo como debilitada, vejo como resultado do uso dessa máquina que é o corpo. Se a gente usa com respeito, vai ter menos dor: nos músculos, nas juntas, na coluna. Se a gente usa como deve ser usada, que é enfiando o pé na jaca, acredito que vai doer um pouco mais”, diz rindo. Afirma, por outro lado, que a cabeça não envelhece, mas acumula vivências. “Aquele filme que o Brad Pitt faz, que a pessoa nasce velha… como é que é?” — O curioso caso de Benjamin Button, respondo. No filme, o personagem do ator norte-americano nasce idoso e com o tempo rejuvenesce, até que morre como um bebê — “Isso, exatamente. Aquilo é maravilhoso, uma metáfora linda. A gente não deveria nascer bebê, devia ser o contrário, porque à medida que você vive, vai experimentando coisas que precisaria de outra cabeça. Por exemplo, na idade que eu cheguei, queria ter o vigor físico para vivenciar o que a minha cabeça já sabe, aí não dá liga”.
Em determinado momento, a questionei se a frase “a velhice é particularmente difícil de assumir” fazia sentido para ela. Dando de ombros, me disse: “não sei te dizer, eu não me sinto velha a ponto de ter que assumir alguma coisa. Deve ser, pra quem leva a vida a sério, pra quem quer ficar esticada durante cem anos, com o cabelo preto, a coluna ereta”.
Questiona, além: “E o que é ser mais velha? É ter o joelho fodido como eu tenho? Porque minha cabeça não acompanha meu joelho não”.
Todo o discurso me lembrou um trecho do livro Carta a minha filha, da escritora e poetisa estadunidense Maya Angelou:
“Estou convencida de que a maioria das pessoas não cresce. Encontramos vagas no estacionamento e pagamos nossos cartões de crédito. Casamos e ousamos ter filhos e chamamos isso de crescer. Acho que o que fazemos é, na maioria das vezes, envelhecer. Levamos o acúmulo dos anos em nossos corpos e nossos rostos, mas, em geral, nosso verdadeiro eu, a criança interior, ainda é inocente e tímido como as magnólias”
Maya Angelou fala de amadurecimento e fixa a velhice como o avançar do tempo, enquanto a mente não condiz com a passagem. Similar ao que é dito por Zora Santos.
O ponto de vista ao lado é que a mente vive tudo que o corpo vive. Talvez até mais do que o físico, se levarmos em conta o complexo campo emocional típico dos seres humanos. A dificuldade de definir o significado de “velha” de Zora é a mesma da maior parte da sociedade.
No mesmo livro, Maya Angelou escreve: “Nossos ossos conhecem o peso dos anos”; para se referir a um casal que se encontra na velhice. Tal qual no pensamento da atriz, é estabelecida uma relação entre envelhecimento e debilitação do corpo. Essa não é uma ideia exclusiva. Na pesquisa Idosos no Brasil: Vivências, desafios e expectativas na terceira idade, da Fundação Perseu Abramo (FPA), em parceria com Serviço Social do Comércio (SESC) São Paulo e Nacional, de 2020, 67% dos entrevistados associaram a chegada da velhice a aspectos negativos, sobretudo doenças e debilidade física.
A velhice é um conceito múltiplo, heterogêneo. É necessário compreendê-la em totalidade. Isso abre caminhos para diferentes percepções, até mesmo negativas.
Dentre os olhares positivos, se escondem alguns lobos. O que mais incomoda Zora é o da universalização da vivência do envelhecimento como de inatividade ou de que toda pessoa idosa como necessitada de cuidados. Segundo a página do Wikipedia destinada ao termo, paternalismo é o nome que dá-se a ações que limitam a autonomia. Com teor paternalista, sob essa visão, idosos são infantilizados e, de certo modo, colocados à margem da sociedade: um mundo destinado aos adultos.
A frase conhecida “cuide dos seus idosos” é problematizada pela atriz:
Por fim, Zora declara:
“Não sou sua velha. Não preciso descansar”
A conclusão depois de algumas horas de conversa é que o que ela mais almeja é estar viva, vivendo uma vida plena, sem que a idade ou qualquer outro itinerário estabelecido por terceiros a defina.
Estamos envelhecendo e o que há com isso?
Dona Íris e Rita, mãe e filha, foram minhas vizinhas por 14 anos, dos meus 7 aos 21. Maria Rita Teixeira Resende tem 68 anos e Iris Teixeira Resende 92. Na casa de muro verde, de frente ao lugar em que eu morava, residem só as duas há alguns anos, depois que o marido de Íris e pai de Rita faleceu.
Uma cena comum da minha infância era Dona Íris sentada em uma cadeira, na calçada em frente a sua casa, observando as crianças brincarem na rua, por um longo tempo. Hoje, essas crianças são pessoas adultas — me incluindo na conta — e a rua tem menos infância.
Matriarca de uma grande família, Íris escreve as memórias e os pensamentos de ao longo de quase uma centena de idade em vários caderninhos, guardados no fundo da gaveta. O texto que ela lê no vídeo é um desses escritos.
O que faz Íris seguir em frente todos os dias são suas memórias, me conta. Lembrar de cada vida vivida faz sua vida mais vida. Na pandemia, principalmente, ela recupera a presença de familiares e amigos por meio de fotografias — que no seu armário e no campo de significados, ocupam o mesmo lugar dos escritos. Existe um forte vínculo afetivo com objetos de memória de maneira geral, mas esse parece ser mais expressivo em idosos mais velhos, como uma forma de fazer o passado presente e manter parte de sua história viva.
Sobre Rita e Dona Íris o que há é uma relação de cuidado mútuo. Maria Rita é uma pessoa com deficiência e caminha com o apoio de uma bengala. Durante a infância, passou por várias cirurgias. Antes mesmo de completar sete anos, por exemplo, já havia passado por 11 procedimentos cirúrgicos. Foi Íris quem cuidou da filha durante todo o período. Agora, com dificuldades que se acumulam, Íris demanda o cuidado de Rita.
Essa não é uma inversão incomum. Sobretudo levando em conta a antiga relação que o patriarcado estabelece entre “mulheres” e o “cuidado”. A elas é posto o lugar e a carga de trabalho de cuidar dos familiares doentes, dos bebês da família, dos idosos que são dependentes e toda situação de servidão nesse sentido. Quem cuida de quem já cuidou? Provavelmente as duas são mulheres.
O que então trás minhas afetuosas ex-vizinhas até aqui? Elas são exemplos vivos das novas relações de velhice que estamos vivenciando enquanto humanidade (e vamos experienciar em mais intensidade nas próximas décadas). Filhas idosas com mães também idosas é uma configuração familiar mais frequente na sociedade do século XXI. Ou seja, estamos vivendo mais e observando, ao vivo, uma transição demográfica na população mundial e brasileira.
A projeção da Organização das Nações Unidas (ONU) para os próximos 30 anos é de que o número de idosos em todo o mundo mais do que duplique, chegando acima de 1,5 bilhão de pessoas em 2050. Em 2019, a população a partir de 65 anos era de 700 milhões no planeta.
No Brasil, as projeções do IBGE acompanham as da ONU: em 2060, o país terá 58,2 milhões de pessoas idosas — o equivalente a 25,5% da população. Isso vai gerar uma alteração na pirâmide etária brasileira, que aponta a tendência de envelhecimento da população. Veja nesse gif a evolução da pirâmide ao longo dos anos, comparando Brasil e Minas Gerais:
Dona Íris é exemplo, também, de longevidade. Ela é parte de um grupo pequeno — em comparação com a população total — de cerca de 815 mil habitantes com mais de 90 anos no Brasil. Dados retirados, também, da projeção de população do IBGE.
“Não quero viver mais do que uns dois anos”, me garante, porém. Questionada o porquê, me diz: “já vivi demais, todo mundo já foi”. Fala também do incômodo de depender de alguém para algumas atividades. “Outro dia eu caí, Rita custou a me levantar, precisou chamar alguém na rua. Não quero dar trabalho”, completa.
Geralmente esse motivo é utilizado para justificar o medo de envelhecer de muitas pessoas. A dependência é vista como verdadeiro bicho-papão na sociedade ocidental individualista. Mas é preciso refletir com mais cuidado sobre a temática, pois, de fato, é uma relação complexa. Por que nos incomodamos de precisar de outra pessoa? Arrisco dizer que esse incômodo tem origem na valorização excessiva do individual e do ideal de liberdade do sistema econômico e político vigente. Tal como valoriza-se e enaltece-se a juventude, o fazem com a independência, sinônimo de sucesso. Da mesma forma como o provérbio nigeriano diz que “é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança”, terá o cuidado de idosos dependentes a necessidade de coletivização?
A reflexão aprofundada também é necessária para as velhices como um todo. Estamos envelhecendo e o que há com isso? A velhice não deve ser encarada como inativa, sinônimo de dependência ou de declínio. Existem aspectos positivos no envelhecimento e é urgente a compreensão dela como uma etapa da vida, como qualquer outra, e não como uma doença.
Do mesmo modo, os sinais da idade não são e não devem ser os vilões da aparência das mulheres. Como todo padrão de beleza, as normas anti-envelhecimento são inalcançáveis, pois em uma luta contra o tempo, estamos todas em desvantagem.
Por fim, não há o que se temer na velhice. Ou a tememos por que tememos a morte? Se a resposta for um sim, então que abracemos a finitude e todas as formas de vida.